sexta-feira, 16 de abril de 2010

Assim falou Zaratustra: – Não posso, aqui, prescindir de uma psicologia da “fé”, do “crente”, em proveito, como é justo, dos próprios “crentes”. Se hoje há alguns que ainda não sabem quão indecente é ser “crente” – ou quanto isso indica decadência, falta de vontade de viver –, amanhã eles o saberão. Minha voz alcança até os surdos. – Parece-me que entre cristãos, se não compreendi mal, prevalece uma espécie de critério da verdade chamado “prova de força”. A fé beatifica: logo, é verdadeira”. – Poderia-se objetar que a beatitude não é demonstrada, mas apenas prometida: sustenta-se na “fé” enquanto condição – será beatificado porque crê... Mas e aquilo que o padre promete ao crente, aquele “além” transcendental – como isso pode ser demonstrado? – A “prova de força”, no fundo, não passa da crença de que os efeitos prometidos pela fé se realizarão. – Numa fórmula: “Creio que a fé beatifica – logo, ela é verdadeira”... Mas não podemos ir além disso. Esse “logo” já é o próprio absurdum transformado em critério da verdade. – Contudo, por cortesia, admitamos que a beatificação através da fé tenha sido demonstrada (– não meramente desejada, não meramente prometida pela suspeita boca de um padre): mesmo assim, poderia a beatitude – dito em forma técnica, o prazer – ser uma prova da verdade? Dista tanto de sê-lo que a influência das sensações de prazer sobre a resposta à questão “Que é a verdade?” praticamente constitui uma objeção à verdade, ou, em todo caso, é suficiente para torná-la altamente suspeita. A prova do “prazer” prova o “prazer” – nada mais; por que se deveria admitir que juízos verdadeiros geram mais prazer que os falsos e que, em conformidade a alguma harmonia preestabelecida, necessariamente trariam consigo sensações de prazer? – A experiência de todas as mentes profundas e disciplinadas ensina o contrário. O homem teve de lutar bravamente por cada migalha da verdade; teve de sacrificar quase tudo aquilo em que se agarra o coração humano, o amor humano, a confiança humana na vida. Para isso é necessário possuir grandeza de alma: o serviço da verdade é o mais duro dos serviços. – O que significa, então, a integridade intelectual?
Significa ser severo com seu próprio coração, desprezar os “belos sentimentos” e fazer de cada Sim e de cada Não uma questão de consciência! – A fé beatifica: logo, ela mente...

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Assim falou Zaratustra: Chama-se cristianismo a religião da compaixão. – A compaixão está em oposição a todas as paixões tônicas que aumentam a intensidade do sentimento vital: tem ação depressora. O homem perde poder quando se compadece.
Através da perda de força causada pela compaixão o sofrimento acaba por multiplicar-se. O sofrimento torna-se contagioso através da compaixão; sob certas circunstancias pode levar a um total sacrifício da vida e da energia vital – uma perda totalmente desproporcional à magnitude da causa (– o caso da morte de Nazareno).
Essa é uma primeira perspectiva; há, entretanto, outra mais importante. Medindo os efeitos da compaixão através da intensidade das reações que produz, sua periculosidade à vida mostra-se sob uma luz muito mais clara.
A compaixão contraria inteiramente lei da evolução, que é a lei da seleção natural. Preserva tudo que está maduro para perecer; luta em prol dos desterrados e condenados da vida; e mantendo vivos malogrados de todos os tipos, dá à própria vida um aspecto sombrio e dúbio.
A humanidade ousou denominar a compaixão uma virtude (– em todo sistema de moral superior ela aparece como uma fraqueza –); indo mais adiante, chamaram-na a virtude, a origem e fundamento de todas as outras virtudes – mas sempre mantenhamos em mente que esse era o ponto de vista de uma filosofia niilista, em cujo escudo há a inscrição negação da vida. Schopenhauer estava certo nisto: através a compaixão a vida é negada, e tornada digna de negação – a compaixão é uma técnica de niilismo.
Permita-me repeti-lo: esse instinto depressor e contagioso opõe-se a todos os instintos que se empenham na preservação e aperfeiçoamento da vida: no papel de defensor dos miseráveis, é um agente primário na promoção da decadência – compaixão persuade à extinção...
É claro, ninguém diz “extinção”: dizem “o outro mundo”, “Deus”, “a verdadeira vida”, Nirvana, salvação, bem-aventurança... Essa inocente retórica do reino da idiossincrasia moral-religiosa mostra-se muito menos inocente quando se percebe a tendência que oculta sob palavras sublimes: a tendência à destruição da vida.
Schopenhauer era hostil à vida: esse foi o porquê de a compaixão, para ele, ser uma virtude... Aristóteles, como todos sabem, via na compaixão um estado mental mórbido e perigoso, cujo remédio era um purgativo ocasional: considerava a tragédia como sendo esse purgativo.
O instinto vital deveria nos incitar a buscar meios de alfinetar quaisquer acúmulos patológicos e perigosos de compaixão, como os presentes no caso de Schopenhauer (e também, lamentavelmente, em toda a nossa décadence literária, de St. Petersburgo a Paris, de Tolstoi a Wagner), para que ele estoure e se dissipe...
Nada é mais insalubre, em toda nossa insalubre modernidade, que a compaixão cristã. Sermos os médicos aqui, sermos impiedosos aqui, manejarmos a faca aqui – tudo isso é o nosso serviço, é o nosso tipo de humanidade, é isso que nos torna filósofos, nós, hiperbóreos! –

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Assim falou Zaratustra: Toda elevação do tipo "homem" foi sempre trabalho de uma sociedade aristocrática e sempre o será - uma sociedade que acredita em longas gradações de hierarquias e diferenças de valor entre seres humanos, e que requer escravidão em uma forma ou outra.
Sem o PATHOS DA DISTÂNCIA, que cresce a partir das diferenças encarnadas entre as classes, do constante olhar para fora e para baixo da classe dominante em direção aos subordinados e serviçais, e de sua igualmente constante prática de obedecer e comandar, de manter abaixo e à distância - que outros pathos mais misteriosos nunca poderiam ser surgido, o anseio sempre por um novo aumento na distância interior da própria alma, a formação sempre de estados mais elevados, mais raros, mais aprofundados, mais extensivos, mais abrangentes, resumindo, apenas a elevação do tipo "homem", a continuada "auto-superação do homem", para usar uma formula moral num sentido supermoral.
Certamente não se deve resignar a nenhuma ilusão humanitária sobre a história da origem de uma sociedade aristocrática (isto é, da condição preliminar à elevação do tipo "homem"): a verdade é dura. Reconheçamos sem preconceitos como toda civilização superior se originou!
Homens com uma natureza ainda natural, bárbaros em todos os sentidos terríveis da palavra, homens caçadores, ainda em posse de força de vontade intacta e desejo de poder, arremessaram-se por sobre as raças mais fracas, mais morais, mais pacíficas (talvez comunidades de comércio ou criação de gado), ou por sobre velhas civilizações maduras cuja força vital final estava extinguindo-se em brilhantes fogos de artíficio de esperteza e depravação.
No início, a casta nobre era sempre a casta bárbara: sua superioridade não consistia em primeiro lugar de seu poder físico, mas de seu poder psíquico - eles eram homens mais COMPLETOS (o que em qualquer instância implica o mesmo que 'bestas mais completas').

Corrupção - como uma indicação de que a anarquia ameaça libertar-se de entre os instintos, e que a fundação das emoções, chamada "vida", está em convulsão - é algo radicalmente diferente de acordo com a organização em que se manifesta.
Quando, por exemplo, uma aristocracia como a da França no início da revolução, arremessou longe seus privilégios com desgosto sublime e sacrificou-se por um excesso de seus sentimentos morais, isto era corrupção: era apenas o ato final da corrupção que tinha existido por séculos, em virtude da qual aquela aristocracia abdicou passo a passo de suas prerrogativas de comando e rebaixou-se a uma função de realeza (ao final, mesmo à sua ornamentação e desfiles). O essencial, entretanto, em uma boa e saudável aristocracia é que ela não deveria se considerar como uma função de realeza ou de estado, mas uma significação e justificação maior delas - deveria aceitar com boa consciência o sacrifício de uma legião de indivíduos, que, por si mesmos, devem ser suprimidos e reduzidos a homens imperfeitos, a escravos e serviçais.
Sua crença fundamental deve ser precisamente que à sociedade não é permitido existir por si mesma, mas somente como uma fundação e andaime, por meio dos quais uma classe seleta de seres possa elevar-se aos seus deveres superiores, e, em geral, à sua existência superior (...).
Refrear-se mutuamente de ofensas, de violência, de exploração, e colocar sua vontade no mesmo nível que a dos outros: isto pode resultar, em um certo sentido grosseiro, em boa conduta entre indivíduos quando as condições necessárias são fornecidas (a saber, a efetiva similaridade dos indivíduos em quantia de força e grau de valor, e sua correlação dentro de uma organização). Tão logo, entretanto, quanto alguém queira tomar este princípio de forma mais geral, e se possível até como um princípio fundamental da sociedade, ele imediatamente revelaria o que realmente é - a saber, um Desejo pela negação da vida, um princípio de dissolução e decadência.
Aqui deve-se pensar profundamente de forma completa e resistir a toda fraqueza sentimental: a vida em si mesma é essencialmente apropriação, injúria, conquista do estranho e do fraco, supressão, severidade, intrusão de formas peculiares, incorporação, e no mínimo, falando o mais suavemente possível, exploração; mas por que alguém deveria para sempre usar precisamente estas palavras nas quais por séculos um sentido depreciativo ficou estampado?
Mesmo na organização dentro da qual, como previamente suposto, os indivíduos tratam-se como iguais - isso acontece em toda aristocracia saudável - ela deve, se for uma organização viva, e não moribunda, fazer em relação a outros corpos, aquilo que os indivíduos dentro dela abstenham-se de fazer um ao outro. Deverá ser o Desejo de Poder encarnado, irá empenhar-se em crescer, ganhar terreno, atrair a si mesma e adquirir domínio - sem dever nada a nenhuma moralidade ou imoralidade, mas porque ela VIVE, e porque a vida É precisamente Desejo de Poder. Em nenhuma instância, entretanto, a consciência comum dos europeus está mais relutante em ser corrigida do que neste aspecto; as pessoas agora excitam-se em todo lugar, mesmo sob o aspecto de ciência, com condições vindouras de sociedade em que "o feitio explorador" estará ausente - isso soa aos meus ouvidos como se eles prometessem inventar um modo de vida que se abstivesse de todas as funções orgânicas. A "exploração" não pertence a uma sociedade depravada, ou imperfeita e primitiva, ela pertence à natureza do ser vivo como uma função orgânica primária; ela é uma consequência do Desejo de Poder intrínseco, que é precisamente o Desejo de Viver - Pensando-se nisso como teoria é uma inovação - como uma realidade ela é o FATO FUNDAMENTAL de toda história (...).

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Also Sprach Zarathustra: 'Good' is no longer good when one's neighbout takes it into his mouth. And how could there be a 'common good'! The expression contradicts itself; that which can be common is always of small value. In the end things must be as they are and have always been - the great things remain for the great, the abysses for the profound, the delicacies and thrills for the refined, and, to sum up shortly, everything rare for the rare.

Azar do dia: A fé é como a água: ela sempre se adapta à forma do vazio que há em cada pessoa.

sábado, 3 de abril de 2010

Also Sprach Zarathustra: (...) and even yet when one hears anybody praised, because he lives 'wisely', or 'as a philosopher', it hardly means anything more than 'prudently and apart'. Wisdom: that seems to the populace to be a kind of flight, a means and artifice for withdrawing successfully from a bad game; but the genuine philosopher - does it not seem so to us, my friends? - lives 'unphilosophically' and 'unwisely', above all, imprudently, and feels the obligation and burden of a hundred attempts and temptations of life - he risks himself constantly, he plays this bad game.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Azar do dia: Só é possível ultrapassar um limite depois de atingi-lo.
Assim falou Zaratustra:
Nessa época recente, que pode se gabar de sua humanidade, ainda há tanto medo, tanta superstição do medo, da "cruel fera selvagem", cuja domesticação constitui o próprio orgulho dessa era mais humana - que mesmo verdades óbvias, como que por concorde de séculos, têm permanecido há muito indizíveis, porque parecem poder ajudar a trazer de volta à vida a finalmente morta fera selvagem.
Eu talvez arrisque algo ao permitir que tal verdade escape; que outros a capturem novamente e dêem a ela tanto 'leite de sentimentos piedosos' para beber, que ela ficará deitada quieta e esquecida, em seu velho canto. - É preciso aprender de novo sobre crueldade, e abrir os olhos; é preciso finalmente aprender impaciência, para que erros grosseiros tão imodestos - como, por exemplo, tem sido cometidos pelos filósofos antigos e modernos no que concerne à tragédia - não mais vaguem a esmo virtuosamente e impetuosamente.
Quase tudo que chamamos 'cultura superior' é baseado na espiritualização e intensificação da crueldade - esta é minha tese; a 'fera selvagem' nunca foi morta, ela vive, ela floresce, ela apenas foi - transfigurada.
Aquilo que constitui o prazer doloroso da tragédia é crueldade; aquilo que opera agradavelmente na chamada empatia trágica, e na base até de tudo que é sublime, chegando às mais altas e mais delicadas excitações dos metafísicos, obtém sua doçura tão somente dos ingredientes misturados da crueldade. O que o romano aprecia na arena, o cristão nos êxtases da cruz, o espanhol na vista do ramo e da estaca, ou da tourada, o japonês do presente que se empenha em direção à tragédia, o trabalhador do subúrbio parisiense que sente saudade das revoluções sangrentas, o Wagneriano que, com resolução perturbada, "submete-se" à performance de 'Tristão e Isolda' - o que todos esses apreciam, e lutam com um ardor misterioso para beber, é do filtro da grande Circe 'crueldade'.
Aqui, com certeza, devemos por de lado totalmente a psicologia desajeitada dos tempos passados, que somente podia ensinar, com respeito à crueldade, que ela se originava à vista do sofrimento dos outros: há uma satisfação abundante, super-abundante, mesmo no próprio sofrimento, em causar sofrimento a si mesmo - e onde quer que o homem tenha permitido a si mesmo ser persuadido à auto-negação no sentido religioso, ou à auto-mutilação, como entre os fenícios e ascetas, ou em geral, à desensualização, descarnalização, e contrição, aos espasmos de arrependimento puritanos, à vivissecção da consciência e à Pascal - como SACRIFIZIA DELL'INTELLETO, ele é secretamente seduzido e impelido adiante por sua crueldade, pela emoção perigosa da crueldade à si mesmo. -
Finalmente, consideremos que mesmo o buscador de conhecimento opera como um artista e glorificador da crueldade, no sentido de compelir seu espírito a compreender contra sua própria inclinação, e frequentemente contra os desejos de seu coração: ele o força a dizer Não, quando ele gostaria de afirmar, amar, adorar; de fato, toda vez que algo é tomado como profundo ou fundamental, é uma violação, uma ofensa intencional à vontade fundamental do espírito, que instintivamente visa à aparência e superficialidade - mesmo em cada desejo por conhecimento há uma gota de crueldade.